A ESTRADA DE FERRO MADEIRA-MAMORÉ - PARTE 3


Engenheiros e topógrafos da Madeira-Mamoré Railway, 1908. Entre eles há um brasileiro, o Eng. baiano Diogo Braga de Andrade.


 >> Continuando com essa cativante história sobre os primórdios da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré.

Tentativas de construção Inglesas e Americanas

A região,

A região localizada no interior do antigo Território do Guaporé, fronteiriço com os estados do Amazonas e Mato Grosso, no lado Brasileiro, e com a Bolívia, representava importante fonte de fornecimento da borracha natural, extraída da seringueira (hevea brasiliensis), árvore natural da região. Desde que a borracha começou a ser explorada seu o transporte até os portos de mar sempre foi feito em canoas que desciam os Rios Madeira e Mamoré, efetuando a ligação entre Guajará-Mirim e Santo Antônio, onde os vapores (embarcações de maior porte) atracavam.

Antes porém do rio Madeira transformar-se em um rio que corre mansamente pela planície Amazônica até encontrar-se com o rio Amazonas, os viajantes viajavam por cerca de 400 km nos rios Mamoré e Madeira onde haviam cerca de 15 a 20 cachoeiras de vários tamanhos, que encareciam muito o custo do transporte, pois exigiam centenas de índios Bolivianos e Brasileiros para ajudar nos serviços de transposição das quedas, sendo que mesmo assim, em todas as viagens essas mesmas cachoeiras cobravam um pesado tributo em termos de tempo, sacrifícios, vidas humanas e perda de mercadorias. Essas cachoeiras eram então o obstáculo natural que dificultava a ligação da Bolívia com o mar e aumentavam em muito o custo das mercadorias nos sentidos da exportação e importação, motivo pelo qual durante quase um século diversos governantes, engenheiros e autoridades da época idealizaram planos e meios de se fazer uma ligação entre essas localidades por terra, de forma a evitar as tão temidas cachoeiras e levar o progresso a essa região, já reconhecidamente uma das mais insalubres do planeta.

Porque uma Ferrovia?

Muitos planos, estudos e projetos foram elaborados pensando-se em ligar as localidades de Santo Antônio, ponto final dos vapores de grande porte que navegavam os rios Amazônicos e Guajará-Mirim, cidade fronteiriça que concentrava o comércio da região e da Bolívia, estudos esses que não chegaram a sair do papel. Em linhas gerais a idéia da construção de uma ferrovia na região data de meados do século passado, quando a construção de estradas de ferro no país já era uma realidade e começou a ser pensado em uma ferrovia margeando o rio como uma alternativa viável para a região.

Nesse momento, quando corria o ano de 1861, nomes como os do general boliviano Quentin Quevedo, do engº brasileiro João Martins Silva Coutinho ou de Tavares Bastos foram os primeiros a sugerir uma ferrovia como instrumento de ligação do Estado do Mato Grosso com o Pará, além de ser um escoadouro para as importações e exportações da Bolívia. A guerra do Paraguai somente veio a reforçar essas idéias, na medida em que dotava de uma importância "estratégica" tal via de comunicação, uma vez que a ligação desse estado via Rio Paraguai estava obviamente prejudicada pelo conflito.

Dessas observações e considerações, nasceu, em 27/03/1967 o "Tratado de Amizade, Limites, Navegação, Comércio e Extradição" entre Brasil e Bolívia, onde na cláusula 9ª, o Brasil indicava claramente a intenção de construir uma estrada, de ferro ou de rodagem, que lograsse superar o trecho encachoeirado dos rio Madeira e Mamoré. 

Engenheiros e empreiteiros da Madeira and Mamoré Railway, na região de Porto Velho, 1908.

Os Estudos e os Estudiosos

Decidida a questão, o Brasil começa a trabalhar nesse sentido e despacha, em 10/10/1967 os Irmãos Keller, engenheiros alemães, para estudar a construção da ferrovia, sendo que esses, após 4 meses de estudos na região e grandes sacrifícios, apresentaram seus estudos ao governo Brasileiro, indicando que, entre a construção de planos inclinados no rio, canalização deste ou construção de uma ferrovia, seria essa última opção mais viável e que seu traçado deveria seguir paralelo às margens dos rios e passar, obrigatoriamente, em frente à foz do rio Beni, para recolher o comércio que descia por esse importante rio da região.

Os irmãos Keller também traçaram, eu seu relatório apresentado ao governo Brasileiro, o qual para variar nada fez, diversas considerações, algumas bastante proféticas, como as características de insalubridade da região, e o fato de que a construção da estrada de ferro deveria ser conduzida por trabalhadores europeus, previsões que de fato foram bastante acertadas.

Começando a ação

Paralelamente a esse estudo, a Bolívia decidiu-se a entrar em ação e enviou aos Estados Unidos o General Quentin Quevedo para entrar em contato com os empresários locais, visando encontrar quem se interessasse na construção de um caminho que contornasse as cachoeiras do rio Madeira. Entre os Americanos, contataram o coronel George Earl Church, que, sendo um empreendedor bastante agressivo, interessou-se pela empreita a ponto de dirigir-se à Bolívia e organizar uma cia. de navegação, a National Bolivian Navigation Company e iniciou um trabalho de procura de empreendedores nos Estados Unidos e Europa que financiassem os trabalhos de construção de uma ferrovia na região, o que não foi possível até que a própria Bolívia desse garantias a esse investimento, através do lançamento no mercado Europeu, de um empréstimo de 2.000.000 de libras.

Como essa estrada de ferro seria construída no Brasil, havia a necessidade da obtenção de uma concessão desse país, o que foi conseguido pelo Cel. Church em 20/04/1870, sendo entretanto exigência do governo do Brasil que fosse organizada uma nova companhia, que deveria receber o nome de "Madeira and Mamoré Railway". Church rcebeu essa concessão pelo prazo de 50 anos, juntamente com a concessão de enormes áreas ao longo do traçado estipulado para a estrada (Santo-Antônio a Guajará Mirim), que somavam mais de 1.350 km².

Lista de Membros da Madeira and Mamoré Association, datada de 1908.



Mapa das corredeiras do Madeira, de Santo Antonio a Guajará-Mirim, por Franz Keller, séc. XIX

Inicia-se a Saga

No dia 1° de março de 1871, foi finalmente incorporada a "Madeira Mamoré Railway Co. Ltd." e os banqueiros londrinos Earlanger & Co. se dispuseram a lançar o empréstimo, desde que a Bolívia, que nessa época estava passando por mudanças em suas políticas internas. Os banqueiros também condicionaram a aprovação do empréstimo à contratação da empreiteira Inglesa "Públic Works Construction Company", o que foi aceito por Church, que também conseguiu que a Bolívia ratificasse a garantia ao empréstimo. Visitadas as cachoeiras do Madeira em conjunto com os engenheiros da Public Works para verificação da viabilidade da construção da estrada, esses, sem praticamente quaisquer estudos, dão como escolhido o ponto inicial para a construção da ferrovia a localidade de Santo Antônio e removem a primeira pá de terra.

Estava iniciando-se a saga da Estrada de Ferro Madeira Mamoré. Ao deixar Santo Antônio, o Cel. Church encontra-se com a barca "Exploradora", que vinha subindo o Madeira. Possivelmente, essa barca já trazia engenheiros para o levantamento da planta da futura ferrovia, uma vez que, somente em 06/07/1872 um grupo de 25 engenheiros chegou a Santo Antônio, juntamente com as máquinas, equipamentos e acessórios necessários para se construir e operar os primeiros quilômetros da estrada de ferro. Descarregados os equipamentos, os Ingleses passam a construir as primeiras edificações para abrigar os engenheiros, trabalhadores e equipamentos mais delicados.

Fracassam os Ingleses

Iniciados os trabalhos, a firma Public Works começa a sentir que seriam grandes os problemas e dificuldades para a construção da ferrovia, pois além da insalubridade e clima hostil da região, era muito difícil encontrar trabalhadores. Contribuíam para as dificuldades o grande o isolamento da região, cuja cidade mais próxima de maior tamanho era Manaus, mas esta ficava há uma distância de vários dias de viagem rio abaixo.

Paralelamente a esses problemas, a empresa ainda viu naufragar uma embarcação sua de 120 toneladas, e apesar de haver trazido materiais e equipamentos para a construção e operação do primeiro trecho, de 36 km, os trabalhos não progrediam devido às doenças endêmicas da região, que começaram a afetar os encarregados da construção, a ponto de um relatório do encarregado do governo brasileiro de medir as terras que seriam concedidas ao Cel. Church ao longo da ferrovia constar que em meados de 1873, todos os trabalhadores sofriam em maior ou menor grau de febres e ainda grassava um surto de varíola no acampamento, já havendo um pensamento geral no sentido de se proceder à retirada daquele local. Isso, menos de 6 meses após a chegada. Era mencionado também o ataque dos índios Caripunas, a falta de alimentos, medicamentos e demais recursos, além da dificuldade para se contratar trabalhadores.

Essas foram mais ou menos as mesmas conclusões do relatório do engenheiro enviado pela Public Works Inglesa, que ainda apurou que o custo estimado inicialmente para a ferrovia, devido às características da região e grandes esforços necessários para se conduzir a empreita, seria superior ao estimado no contrato inicial, bem como deveria demorar muito mais tempo que o previsto, e não sem a perda de um sem-número de vidas humanas.

Esse relatório, somado ao fato de após quase um ano de permanência da equipe da Public Works no local ainda não ter sido assentado nem um metro de trilhos, levou a empreiteira a entra na justiça em Londres para rescindir o contrato. De acordo com os registros da época, reproduzidos no livro A ferrovia do Diabo, em 09/07/1873 a Public Works entregava uma petição afirmando que fora enganada quanto à real extensão da estrada e condições da região "a qual era um antro de podridão e onde seus homens morriam como moscas", frase que pode servir como resumo do que enfrentariam todas as empreitas que iriam lançar-se à construção dessa ferrovia e começou a lançar a mística dde que seria uma ferrovia "amaldiçoada".

No Brasil, a repercussão desse fato também era grande, pois em setembro de 1873, o Diário do Grão Pará, em Belém, afirmava que o pessoal que subiu o Madeira voltou "flagelado pela peste", os europeus importados para auxiliar na construção "desertaram" e que toneladas de equipamentos e materiais estavam "expostos à ação do tempo" e deteriorando-se na floresta amazônica, além de mencionar a morte de dezenas de trabalhadores e engenheiros por doenças tropicais diversas.

Entretanto, não obstante a paralisação dos trabalhos de construção da ferrovia, os Ingleses continuaram com os serviços de levantamento topográfico, visando mapear toda a futura linha da estrada de ferro, com o objetivo de provar, junto aos tribunais ingleses, que a extensão final da estrada seria muito maior que a firmada no contrato com o Cel. Church. Pra isso, uma parte do grupo permaneceu em Santo Antônio até janeiro de 1874, quando, terminados os serviços de levantamento topográfico, o grupo retirou-se de volta para a Inglaterra, bastante abalado pelas doenças e o drama que viveram aqui, a ponto do engº brasileiro Carlos Morsig escrever, em 1883, que "durante 16 meses de estada no Madeira, foi o pessoal da empresa cruelmente dizimado por terríveis enfermidades.", de onde se conclui que realmente devem ter havido centenas de mortos entre os funcionários dessa empresa.

>>> continua....



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